É o dia 90. Como os 89 anteriores, antes de abrir os olhos já me lembro. Lembro da contagem, lembro que vai ser mais um dia desse presente nada familiar.
As memórias vão ficando amareladas. As pessoas já perderam a paciência. Ele provavelmente já beija muitas outras bocas e já tirou o meu cartão da geladeira, a minha escova da gaveta e meu par de chinelos jogados do chão.
Seria o suficiente para não doer, mas não é. Como um paciente em coma, cada dia a mais é uma chance a menos de acordar. Cada chance diminuída finca mais um pouco e não há relógio que cale isso. Pelo contrário.
Perco meu tempo num aplicativo qualquer. Passo o dia escrevendo textos imaginários que machucam pelos dedos e falham a memória. Esse é um deles.
Os dias sem ele não precisam ser contados. É uma vida inteira antes e será uma vida inteira depois. Uma vida em parcelas de 90 dias arrastados, lentos, com gosto de nó na garganta. Um hiato colorido no meio. Uma vida inteira.
