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daniele

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(still under work)

liguei o aplicativo de relacionamentos na primeira vez que sentei para beber com ivan e rodolfo, na véspera, logo que chegamos em roma. gra estava no airbnb descansando para a noite de ano novo e, enquanto eu rolava as fotos no app, dividimos brindes, memes, piadas e duas garrafas de vinho na varanda de um restaurante pega-turista qualquer na piazza de espanha.

dos outros matches não me lembro. um bolo disforme de fotos de italianos (e alguns turistas) charmosos que eu arrastei com os dedos pra esquerda e pra direita (tá, mais pra direita que pra esquerda) quando, pá, o rosto do moço lindo jovem e loiro na tela do celular. daniele tinha nome de menina, como tantos outros nomes naquela língua, e 20 anos que tinha acabado de completar. eu já tinha folheado dezenas de caras bonitas nos minutos anteriores, mas só daniele me fez virar o aparelho na mesa, pra mostrar toda orgulhosa o match que eu conquistei. dei até print da tela com as duas fotinhas, a minha e a dele, embaixo do escrito “it’s a match”!

esse teatro todo só aconteceu porque daniele era, sem tirar nem pôr, o meu tipo. até a idade, que pra muita gente seria empecilho intransponível, encaixava perfeitamente no meu rol de preferências recentes. as fotos de daniele eram todas tiradas claramente de improviso, o aplicativo acusava que ele tinha acabado de instalar e mostravam, escancaradas, o menino loiro de ombros largos, narigudo e bonito de doer. daniele só poderia esconder aquela beleza toda se se fingisse de estátua, adjacente a uma fontana qualquer da cidade ou dentro dum museu.

além da cara linda, as fotos mais nada diziam. daniele na mesma hora puxou papo, contou dos planos pra virada, explicou que era de roma mesmo e ficou de dar notícia no dia seguinte. não botei muita fé, desde o início tudo em daniele parecia nuvem passageira, um cara que tem todos os olhos do mundo à disposição e um interesse em nada em particular. quando recebi a mensagem, depois do almoço de primeiro de janeiro, já fiquei animada e, na sequência, assustada com a resposta que recebi quando perguntei o que não podia perder na cidade: “eu”. 

emendou sem freio que estava com a casa livre, eu já desconfiada daquele ritmo, a gente mal tinha conversado, não parecia seguro ou prudente. mais do que isso eu não ia julgar, não estava em busca de grandes coisas, mas ainda zelava por estar viva e inteira para viver o resto da viagem. daniele passou o instagram, na tentativa de dar uma segurança qualquer, e eu cheguei a negar o convite, mas descobri que meus amigos estavam já em um bar do outro lado da cidade. tomei fôlego, mandei todas as informações, prints e contatos que tinha de daniele e liguei o compartilhamento de localização por gps em tempo real pelas próximas 8 horas.

daniele disse que ia me buscar de scooter, o que eu não sabia traduzir se era um dos centenas de patinetes espalhados por roma ou uma moto. chegou daí a meia hora e estacionou a vespa na viela do hotel, tirando, de um jeito envergonhado, o capacete que cobria exatamente o que as fotos fizeram questão de mostrar. me cumprimentou, alto e estabanado, sem saber se abraçava, se dava um beijo no rosto, se apertava a minha mão. daniele inventou de me mostrar, a pé e ali perto, alguma coisa que não quis adiantar. fomos andando pelas vielas do centro histórico, passamos pelo que, ele contou, era o gueto judeu na época entre-guerras, e demos numas ruínas romanas, colunas enormes que teimaram ao futuro que subiu em volta.

foi nesse trajeto que daniele ganhou algum recheio. cresceu em roma, morava em milão para estudar. contou que sentia saudade de casa, do clima, que milão tinha o céu sempre baixo e não era tão legal assim. a vida na faculdade era boa. era uma escola estrelada, cheia de alunos internacionais, o que explicava o inglês perfeito que ele falava mesmo que sem ter perdido o sotaque. explicou que me trouxe ali porque uns poucos anos antes, na época do liceo, sentava diante das ruínas com os amigos pra beber. era um dos seus lugares preferidos de roma e, o outro, ele já ia me mostrar.

voltamos pra rua do hotel e daniele tirou do bagageiro da moto um segundo capacete. eu não sabia vestir aquele troço ou fechar a correia no queixo. a minha falta de jeito pra subir no scooter, então, acusou meus 37 anos e uma década sem exercício nenhum. não fiquei com medo. enquanto ele acelerava eu segurava o celular, a um segundo de cair da mão, nos filmando na viagem pela câmera frontal. seguimos pro outro lado do tibre, bem pertinho do vaticano e do castelo sant’angelo, onde ele morou a vida inteira.

a família de daniele mantinha um apartamento vazio no mesmo prédio em que seus pais moravam, herança da avó que ainda era viva mas ficava no interior. daniele pediu que eu esperasse na entrada um minuto, apareceu com uma garrafa de vinho e dois copos comuns e subimos de elevador para o último andar do prédio. mais um lance de escada nos levou pra um telhado gelado, debruçado sobre o domo da basílica de são pedro e as colunas da praça do vaticano. esse sim, era o seu lugar preferido da cidade onde nasceu.

daniele se dizia romano, não italiano. se escondia naquele telhado desde criança, quando ainda não tinha a privacidade do apartamento da avó. comparou o céu de roma e milão mais sei lá quantas vezes e fez questão de contar que tinha perdido, poucos meses antes, o melhor amigo da escola. ele pensava nisso todos os dias, ainda mais agora que voltou para a cidade pela primeira vez depois que ele morreu.

senti frio e descemos pro apartamento, daniele abriu a janela e acendeu um baseado. perguntei como era ali na itália, se era legalizado, a quantas andava esse assunto. daniele apontou pra fora, mostrando o vaticano, e disse “tá vendo aquilo ali? nunca vão deixar.” apagou o cigarro com a ponta dos dedo e me deu um beijo atravancado, fechado, seco, com o rosto mais doce do mundo. daniele não sabia beijar, como não sabia muitas coisas, era um menino de 20 anos que carregava toda a beleza mas apelo sexual nenhum. não tinha. era uma pessoa tímida, completamente diferente do sujeito direto e ousado nas mensagens do celular. 

sabe-se lá o motivo, daniele logo achou em mim um conforto pra dizer coisas, ele avisou, que nunca falava antes. esparramado no sofá ao meu lado, olhando pro teto, inventou de contar da sua inexperiência, dos amores da faculdade, de como era perdidamente apaixonado por uma mulher mais velha e justo por isso queria conhecer outras. contou do fardo (oh, coitado!) de saber que as pessoas o olham, que a beleza sempre chega antes e que vive sendo comparado pelas amigas a um golden retriever. eu jamais, não importa o quanto escreva, faria uma analogia melhor.

a essa altura, demorei um pouco a perceber, daniele tinha trocado do inglês pro italiano. falava sem parar na língua que eu mal conseguia acompanhar, mas entendia. só quando percebi que eu estava cochilando já fazia uns minutos, levantei e chamei um taxi. antes dele chegar, combinamos de nos vermos em milão, dali a algumas semanas. só fiz questão de dizer, na tentativa de o acalmar, talvez, que seria como amigos.

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desfilles

I got fire in my brain. In my heart and veins. In between my legs.
(And now I'm back to writing.)

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By desfilles

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