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silêncio

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os dias passam, se acumulam. não há garantias nem uma tendência lógica: um melhor, outro pior. uma manhã boa pode antever uma noite de desespero. quando tudo parece se perder, pode ser que um cochilo salve as horas restantes. sigo com a culpa de desejar que o tempo passe, o quanto antes. é o meu bem mais precioso e a minha vontade é que ele escoe num fluxo derramado.

(o bem mais precioso é o meu maior sofrimento.)

enquanto isso, silêncio.

esse silêncio eu recheio com palavras. elena fala, celeste fala. fala-se em inglês e em português, quando eu me canso. fala-se de uma cingapura rica, de uma infância em nápoles, dos adolescentes de ohio, viúvas punjabi e seus casos eróticos ou, simplesmente, da nossa espécie. qualquer palavra que, mesmo que não quebre sonoramente o silêncio, me tire, ainda que por um segundo – ou por um capítulo – da ansiedade da incerteza.

entre parágrafos, às vezes, eu me perco.

absorta na imagem de uma sarda do ombro. em uma memória – já se apagando – de um cheiro de shampoo. um tique que enrola os dedos da mão, enquanto se concentra em assuntos complicados. volto ao parágrafo. releio.

já era noite e, mesmo assim, eu fui a pé. tive algumas quadras – e bons minutos – para me preparar para um ritual que eu vivi repetidamente e do qual eu nunca pareço me livrar. acho que encaro com mais naturalidade do que a maioria, é verdade, mas, por chegar antes e ter que esperar por um rosto que eu não reconheceria, não deu para evitar o nervosismo.

ainda nem tinha começado, mas o fim se apresentou muito antes: enquanto eu limpava o xixi da cachorra do sofá.

é difícil ler, de início, todos os sinais de problemas. uma confissão de uma fraqueza constrói intimidade, afinal. todo mundo tem bagagem, todo mundo tem história. quem sou eu pra julgar? eu poderia apontar uma meia-dúzia de outras coisas, já ali, que poderiam se tornar problemas de verdade lá na frente.

e, pra ser sincera, foram exatamente elas que se tornaram.

tenho percebido que eu menosprezo a minha intuição. intuição. tem gente que se agarra à palavra e tenta jogar essa carta a todo momento. eu, em geral, ignoro. acoberto percepções subjetivas com meus diagnósticos e, com frequência, duvido do que eu vejo como realidade.

mas a verdade é que o que eu percebi naquele dia era um fragmento de algo muito palpável hoje.

já ele, pelo que conta, entendeu tudo errado. o motivo pelo qual ficou – e ficou até hoje (ou anteontem) – eu não sei bem dizer. se o que ele vê é o oposto do que viu, como gostar de duas pessoas tão diferentes? não acertou se era magra ou gorda, não acertou o significado do beijo, a pegada. não entendeu nada. mas ficou.

talvez tenha ficado para mascarar a bagagem. anestesiar a dor. talvez eu fui as palavras no silêncio: a celeste, a elena, as viuvas punjabi e os bilionários de cingapura. todos tão diferentes e servindo ao mesmo propósito. isso, quando conseguem.

porque, pelo que eu aprendi nesses meses, às vezes eu não consigo. às vezes ele se distrai entre as minhas páginas. os devaneios buscam uma outra voz – uma foto, uma notícia, uma resposta. qualquer coisa. talvez ele viva, há meses, a mesma aflição que eu vivo hoje. divido com as páginas o fardo de ser uma solução breve, um capítulo com hora pra acabar.

nossa distância é cada vez maior. as memórias embaçam a cada dia. nos perdemos mais e mais. compartilhamos, ainda, o silêncio. a busca por respostas desencontradas. a sobreposição de sofrimentos que não se resolvem mutuamente. um impasse inegociável.

aquela espera acabou com um vulto atravessando a rua com sobretudo de lã. em fevereiro. em são paulo. a imagem que eu guardo do rosto que me cumprimentou – bem imprecisa, é verdade – não corresponde a que eu levo hoje. também não é a mesma das três fotos que eu examinei antes. durante um mês inteiro, muito recentemente, eu lembrei constantemente de uma dessas fotos sem me ligar que eram suas. fiquei me perguntando do onde tirei aquela imagem, quem era a pessoa de fone de ouvido que batia ponto na minha memória – mesmo que já estivesse acordando ao seu lado todas as manhãs.

existia, naquele momento, uns quatro dele – e não levou nem dez minutos para que esses quatro se tornassem um outro. não levou nem quinze para que esse outro me levasse pra um lugar de conforto, familiar. foi ali que construímos uma bolha de riso solto, olho no olho e conversa infinita que em seguida abriu espaço pra comportar também pele, e colo, e foi inundada de feromônios.

a partir desse dia – e até outro dia mesmo – nos encontrávamos aí, na bolha: um lugar que comporta apenas duas pessoas. invadida por outra, ela se estourou. restou a nós nos encontrarmos no silêncio.

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desfilles

I got fire in my brain. In my heart and veins. In between my legs.
(And now I'm back to writing.)

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By desfilles

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